quarta-feira, 7 de julho de 2010

Salvo é aquele que se salva

(Leonardo da Vinci)



Conto publicado originalmente no site
Paraíba Online

“Às vezes ocorre dentro de mim uma angústia que dilacera vísceras, vasos, músculos, tendões e por fim rasga a pele. O rosto se torna aflito – semelhante ao do Dr. Gachet pintado por Van Gogh – e dificilmente essa dor torna-se imperceptível a quem está em volta. O melhor nesta hora é correr para algum lugar escuro, jogar-se debaixo do primeiro sofá e ali ficar, acolhido, protegido, idêntico a Gregor Samsa quando metamorfoseado em inseto. Melhor ainda seria esquecer essas referências da literatura, da pintura, da filosofia, do que seja e tentar olhar para mim mesmo, deparar-me com meus demônios. Entretanto, esse é um processo muito complicado, pois sou um acúmulo daquilo que vivi, li, ou simplesmente ouvir falar. Assim como um texto comporta diversas vozes de outros textos, como na intertextualidade de Bakhtin, também sou eu um mosaico, formado por fragmentos muitas vezes incoerentes. Como olhar para mim mesmo se nem sei quem sou?”

Pensava neste turbilhão de palavras soltas devido ao tédio que lhe corroia a alma. Estava a uma semana em Petrolina, Pernambuco, e não aguentava mais não haver nada de interessante para fazer. Saia todas as noites para desenhar a vistosa Catedral que se encontrava na praça principal, no centro da cidade. A construção combinava perfeitamente o estilo refinado com o rústico, numa mistura de cores branca e traços retilíneos com a imperfeição das pedras cinza sobrepostas em suas paredes. Passava horas diante dela, dando existência, lentamente, a todos os seus detalhes, apagando e retornando a rabiscar, como se não quisesse terminá-la nunca.

Numa dessas noites conheceu duas meninas que, passando pela praça, ficaram interessadas no que ele fazia. – Olá, você está desenhando, não é? – Perguntou-lhe uma delas. – Sim, estou fazendo a Catedral. – Respondeu. – Podemos ver? – Insistiu a mais desinibida. – Com certeza – Disse apresentando seu desenho a elas. Era somente um esboço, ainda com os traços muito leves para serem compreendidos sem uma observação mais profunda. Olharam rapidamente e decidiram ficar um pouco mais para conversar. Uma das meninas, chamada Thatiane, fez diversas perguntas ao rapaz, chegando inclusive ao terreno das intimidades. Queria saber se ele era casado, se vivia de arte, se fumava, que estilo de música escutava, se estava há muito tempo na cidade, se pretendia voltar e, inconscientemente, se estava interessado nela. Falava olhando vorazmente para sua boca e tocando seu braço, deixando explícita sua vontade. Ele percebeu imediatamente, porém, a moça não despertou o mesmo impulso no rapaz. – Sou capricorniano, tenho vinte e seis anos e não é que eu sobreviva de arte, o correto seria dizer que só consigo sobreviver através dela, junto a ela. De outra forma, a vida não me existiria. – Ele se sentia melhor, e devido a isso, ficaram conversando por vários minutos, até trocarem contatos e elas irem embora.

Em outra ocasião, veio saber o que ele fazia naquela praça um moço de vinte e um anos, fã do Roberto Carlos e que também desenhava. Aproximou-se com os olhos colados no desenho da Catedral, ainda incompleto, e sorrindo largamente. Disse – Sou Barbosa, posso lhe ver desenhar? – Ele, estendendo a mão, respondeu – Será um prazer. – Conversaram pouco, pois estando cada qual com sua pasta de desenhos, ficaram boa parte do tempo observando-as. Barbosa fazia caricaturas, a maioria do Roberto Carlos, que ele carinhosamente chamava de Robertão. – Aqui em Petrolina, não valorizam o que faço. – Disse Barbosa. – Sei com é. Cabe a nós valorizarmo-nos. - Respondeu o rapaz, que a esta altura já havia voltado para seu desenho da Catedral. Barbosa decidiu que também iria desenhar, e o escolheu como modelo. – Vou lhe desenhar. – Disse pegando seu lápis 6B que orgulhosamente trazia dentro do zíper da pasta. Ficaram por ali alguns minutos, até que terminando, Barbosa lhe entregou o desenho. Ficou realmente muito bom, pois poderia sentir naqueles traços, ainda inexperientes, grande força e talento. – Muito obrigado Barbosa, vou guardar com carinho, meu amigo. - Colocou-o dentro da pasta e voltou-se ao desenho da Catedral.

Sempre que saia a noite levava consigo uma pequena xícara branca e uma garrafa de cachaça de mandioca que ganhou de Ana Patrícia. Ana encomendou a ele um quadro grande a óleo, de 1,70 x 1,20 m, onde queria que fosse feito uma releitura do Nascimento de Vênus de Botticelli. Neste mesmo dia ofereceu para ele Tiquira, uma cachaça feita de mandioca proveniente de Barreirinha, no Maranhão. – Nossa! Que coisa mais deliciosa! Estou mesmo encantado. – Falou o rapaz enquanto tomava seguidas doses da bebida. – Escuta, será que posso levar a garrafa? Tenho certeza que não conseguirei encontrar dela por aqui, e por isso gostaria muito de ficar com essa preciosidade. – Ela, sorrindo, respondeu que sim. Ele aproveitou e levou junto a xícara na qual tomava suas doses. A partir de então, sempre que saia durante a noite, levava sua garrafa e sua xícara, e ficava lentamente degustando aquela bebida maravilhosa. – Quando acabar vou ter que viajar para o Maranhão atrás de mais disso. Como poderei viver sem esse néctar? – Questionava-se.

O quadro encomendado por Ana Patrícia deveria ser realizado em quatro meses, de julho a novembro. Tempo suficiente para pintá-lo, terminar as obrigações pendentes e ainda poder dedicar-se a boemia. Sabia que deveria planejar as coisas dessa forma, já que ele era escravo de seus desejos ao tempo que era extremamente responsável com seus compromissos. Quando censurado acerca dessa sua postura, defendia-se: – Não que eu seja alcoólatra, maconheiro ou mesmo viciado em sexo. Sou apenas viciado em prazer, e esses elementos estão relacionados e ele, de forma tão intensa como estão relacionados também à dor. Não me importa se dizem que estou escolhendo a forma da minha morte, pois sei que ninguém escolhe a morte que terá. O que podemos escolher, na verdade, é a maneira como queremos viver, e isso é tudo que me cabe fazer. Escolho a vida em sua plenitude, em sua complexidade e principalmente em sua imperfeição. Foda-se sua estabilidade, à merda com sua segurança. Sei que em nada disso está intrínseca à felicidade, pois ela somente existe como instante. E neste momento ela se encontra ancorada em tudo aquilo que me proporciona prazer. Um brinde ao Deus Baco!

Voltaria para Campina Grande em breve. Apenas uma semana era o tempo que ainda ficaria em Petrolina, que embora pacata, era acolhedora. Regressaria à Pernambuco somente em novembro, com o quadro terminado, mas já se encontrava ansioso para ver o resultado final da tela. Sabia que ficaria bom, pois daria seu sangue e seu suor para isso. Não temia mais esses desafios. A experiência lhe havia dado segurança suficiente para fixar-se pernóstico diante destes reptos. – Estarei de volta mais forte do que nunca, mesmo com as vísceras dilacerada e ainda sendo este ser fragmentado e inconstante. – Incitou-se.

Deveria, em Campina, retornar a ver as pessoas que amava: sua família, seus amigos e amigas, como também aquela a quem apelidou de Maiona e de quem sentia tanta falta. Agora, a uma semana de distância do embarque, encontrava-se feliz e acolhido, mesmo que ainda apertado debaixo do sofá. E embora continuasse sendo o mais horrível dos insetos, sabia possuir algo que Gregor Samsa nunca usufruíra: Um lindo filho de seis anos capaz de renovar, transgredir e transformar tudo aquilo que ele já tinha sólido em sua intelectualidade. Foi com Pablo que aprendeu que o conhecimento acadêmico é ignorante, pois a vida em si estava bem ali, prostrada diante dos olhos e bem distantes dos livros e das verdades acadêmicas. – Vamos filho, entre aqui debaixo do sofá comigo e me leve onde não há limites. Empreste-me suas fantasias e me livre da rispidez deste mundo concreto, frio e acinzentado. Venha, meu amor, e me ensine a me salvar. – Era exatamente o que ele precisava para aniquilar, por hora, com toda aquela angústia.

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